130 anos da Abolição da Escravidão no Brasil
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- 14 de mai. de 2018
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“Povo guerreiro, bate tambor! Comemora a liberdade, mas a igualdade não chegou…”

No ano de 2018, completam-se 130 anos da assinatura da Lei Áurea que, em 13 de maio de 1888, declarou extinta a escravidão no país. Depois de mais de 300 anos, o Brasil foi a última nação do Ocidente a abolir o trabalho escravo, entretanto, o legado deste período recai até os dias de hoje sobre a população negra do país.
A abolição da escravidão respondeu, sobretudo, à interesses políticos e econômicos do que um desejo genuíno de libertar a população negra brasileira. Sem a criação de mecanismos efetivos que pudessem integrar o negro à sociedade, os ex-escravos e seus descendentes foram abandonados à própria sorte, discriminados e marginalizados pela classe dominante - majoritariamente branca. Como resultado, mesmo depois da Lei Áurea, a população negra permaneceu em espaços e condições subalternas. A não incorporação do negro à sociedade, após a abolição da escravatura, explica-se e é fundamentada pelo mito da democracia racial, tema trabalhado pela historiadora brasileira Emília Viotti da Costa, em sua obra “Da Monarquia à República: momentos decisivos”, de 1977.
De acordo com Viotti, após a escravidão, no início do século XX - curiosamente - vigorava a ideia de que o país era o exemplo de uma democracia racial - concepção defendida pelo sociólogo pernambucano Gilberto Freyre. Dentro da ideia de democracia racial, mesmo admitindo que os brancos brasileiros eram preconceituosos, a não incorporação do negro na sociedade era justificada pela diferença entre as classes sociais mais do que preconceitos de raça ou de cor. Colocava-se que os negros no Brasil desfrutavam de uma certa mobilidade social - possibilidade de ascender socialmente - e expressão cultural. Ademais, admitia-se que qualquer pessoa que não fosse “obviamente” negra - ou seja, que não apresentasse as características fenotípicas comumente atribuídas à população negra: como a pele retinta, os lábios grossos e narizes largos e o cabelo crespo - era considerada branca e que, por conseguinte, os negros estavam “desaparecendo” e se incorporando cada vez mais ao grupo branco. Mesmo com um legado de mais de três séculos de escravidão, acreditava-se que o país havia “superado” qualquer dilema racial através do processo de miscigenação.
A concepção de democracia racial permaneceu no entendimento dos brasileiros por mais de 20 anos até ser contestada pela geração de cientistas sociais das décadas de 1950 e 1960 - os revisionistas. Os novos estudos da Escola Revisionista - liderada pelo sociólogo paulista Florestan Fernandes - sobre as relações raciais no Brasil, divergiam profundamente das ideias defendidas por Gilberto Freyre. Os revisionistas chegaram à conclusão de que os brancos no Brasil sempre foram preconceituosos, e de que os negros, apesar de não terem sido legalmente discriminados, foram natural e informalmente segregados. Além disso, a maioria da população negra permaneceu numa posição subalterna sem nenhuma chance de ascender na escala social. Desse modo, as possibilidades de mobilidade social foram severamente limitadas aos negros e sempre que eles competiram com os brancos foram discriminados. Para os revisionistas, a ideia da democracia racial brasileira não passava de um mito amplamente difundido. Suas novas concepções introduziram a problemática da contradição intolerável entre o mito da democracia racial e a real discriminação sofrida pela população negra. Todavia, o ideário de Freyre já havia sido disseminado entre a elite branca como também para muitos negros. Assim, a visão dos revisionistas não foi bem recebida pela sociedade de maneira geral e estes, por fim, foram acusados de inventar um problema racial que não existia no país. O mito da democracia racial pormenorizou e obscureceu as diferenças raciais existentes no país, entretanto apreender as suas origens e o seu desenvolvimento é fundamental para perceber como as questões raciais são colocadas até os dias atuais.
Para compreender o mito da democracia racial - como aponta Viotti - é necessário compreender os padrões raciais que vigoravam no Brasil desde o período colonial - e a transfiguração destes com a instauração da ordem social competitiva (instituição do trabalho livre). Ainda assim, em primeiro lugar, cabe assimilar como a elite branca brasileira concebia a questão racial. É por certo que, a elite brasileira já possuía os elementos necessários para forjar sua própria ideologia racial. Desde o período colonial, a elite branca já distinguia o negro como ser inferior, ao passo que também já havia aprendido a abrir “exceções” para que alguns indivíduos negros e mulatos pudessem frequentar e participar de seus círculos sociais. Para formular o problema do negro em seus termos, os brasileiros precisariam descartar as duas principais suposições das teorias raciais em voga: a) a natureza inata das diferenças raciais e b) a degeneração característica ao sangue mestiço. Adaptando as ideias racialistas à sua própria realidade, os brasileiros - embora afirmando a superioridade dos brancos sobre os negros - tinham meios para aceitar negros em seus grupos. E, sobretudo, tinham a esperança de suprimir o estigma negro no futuro, através da miscigenação. A miscigenação caracterizava-se, portanto, como uma espécie síntese do amálgama étnico do país. Esta também é a chave para compreender uma das características principais do mito: o processo de branqueamento.
Uma das máximas da ideia de democracia racial é a negação do preconceito e a crença no processo de branqueamento da população. Através da miscigenação, o país teria condições para superar os dilemas interpostos pela mistura das raças. Adotando o mulato como categoria especial, a elite branca brasileira “possuía” meios para aceitar indivíduos negros em sua camada social. Assim, justificava-se a suposta “mobilidade social” dos negros no Brasil: a aceitação, sobretudo, de indivíduos mulatos “evidenciava as oportunidades de ascensão social”. Ao revés, o “processo de branqueamento” também imprimia consequências sobre a população negra - a) a dificuldade para que esta população desenvolva um senso de identidade de grupo; reforçado por b) os indivíduos negros que ascenderam socialmente tiveram um preço a pagar: tinham que adotar a percepção que os brancos possuíam do problema racial e dos próprios negros - e acabavam por contribuir, inconscientemente, para a difusão do mito.
Isto posto, o ponto nodal para “a compreensão do padrão racial, do processo de formalização do mito e de sua crítica pode ser encontrada no sistema de clientela e patronagem e no seu desmoronamento” (COSTA, 1998, p. 380). No período colonial, o monopólio dos meios de produção estava nas mãos de uma minoria branca - composta por fazendeiros, comerciantes e burocratas - e as oportunidades de participação econômica, política e social das massas eram limitadas. Estes fatores criaram as bases para um sistema de clientela e patronagem. Dentro deste sistema, os brancos pobres; negros livres e mulatos - a maioria da população - funcionavam como clientela da elite branca. Nesse sentido, a mobilidade social - de negros e brancos - estava subordinada à palavra decisiva da elite branca. “Os negros podiam ascender na escala social apenas quando autorizados pela elite branca” (COSTA, 1998, p. 381). Todavia, com a crise do sistema colonial e a formulação de um contexto de intensas mudanças e rompimento com as tradições, o sistema de clientela e patronagem desmorona e vem à tona a ordem social competitiva que - de acordo com seus pressupostos, presume um espaço de disputas desiguais - escancara por completo o cenário de discriminação racial no Brasil. “Os padrões raciais no Brasil passaram de um modelo paternalista para um modelo competitivo, da acomodação racial para um conflito racial, de um sistema de relações raciais no qual o preconceito, embora presente, não era necessário, para um sistema no qual o preconceito é necessário” (COSTA, 1998, p. 376).
Nesta sociedade pós abolição, o preconceito, o racismo e a discriminação “tornaram-se” visíveis:
“Os brancos tornaram-se mais conscientes de suas atitudes preconceituosas, uma vez que tinham que confrontar os negros em lugares que eles raramente frequentavam antes (clubes, teatros, universidades e hotéis da classe superior) ou em momentos que tinham que tratar, face a face com um negro “agressivo”, “arrogante”, que não cumpria seu papel de acordo com as expectativas tradicionais de humildade e subserviência”. (COSTA, 1998, p. 384)
Este terreno propiciou a criação de uma ideologia que, simultaneamente, velava a realidade das relações raciais no Brasil e dava respaldo ao racismo; preconceito; à discriminação sofrida pela população negra. O cenário de uma suposta democracia racial na verdade nunca existiu. Ironicamente, mesmo depois de contestada, ainda permeia o ideário de muitos brasileiros.
Em um momento como este, após 130 anos da abolição da escravatura no país, cabe a nós refletir o lugar ocupado pela população negra brasileira que, ao ter todas as oportunidades espoliadas, ainda é a mais atingida pela violência ( Atlas da Violência de 2017: 78,9% dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídios, são jovens negros; Mapa da Violência 2015: o feminicídio de mulheres negras aumentou 54% entre 2003 e 2013; Informações da Central de Atendimento - Ligue 180, de 2015: 58% dos casos de violência doméstica são contra mulheres negras; Infopen: considerando a população carcerária brasileira - em torno de 622 mil pessoas - mais da metade (61,6%) são pretos e pardos), pelo desemprego (IBGE 2017: 63,7% dos desempregados, o que corresponde a 8,3 milhões de pessoas, são negras) e pela falta de representatividade (O levantamento da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) considerou as produções brasileiras que alcançaram as maiores bilheterias entre 2002 e 2014. Dentre os filmes analisados, 31% tinham no elenco atores negros, quase sempre interpretando papeis associados à pobreza e criminalidade). Conclui-se, com os versos do rapper Criolo: “Povo guerreiro, bate tambor! Comemora a liberdade, mas a igualdade não chegou (…) No pós liberdade, o negro foi marginalizado, teve a alma aprisionada com as algemas da desigualdade. Hoje refugiado em favelas, onde a vida tem suas mazelas, combate a miséria, o preconceito e a adversidade. A igualdade e o respeito, mais do que anseios também são necessidades!”.

Escrito por: Paula Cardoso
Referências:
COSTA, Emília Viotti da. “O mito da democracia racial”. In: Da Monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo: Fundação Editora UNESP, 1998.
Música:
CRIOLO. Povo Guerreiro. Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=595vpTlEGVk> . Acesso em: 13 de mai. de 2018.
Dados estatísticos:
Oliveira, Tory. “Seis estatísticas que mostram o abismo racial no Brasil”. Carta Capital. Publicado em: 20 de nov. de 2017. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/sociedade/seis-estatisticas-que-mostram-o-abismo-racial-no-brasil> . Acesso em: 13 de mai. de 2018.
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