Como ciência e literatura influenciaram as conquistas da mulher em uma sociedade dominada pelo homem?
As mulheres têm sido subordinadas a uma sociedade centrada no homem, vítimas do machismo diário. No passado, a situação era ainda mais precária, a ponto de privarem as mulheres de direitos humanos, por serem consideradas biologicamente inferiores ao homem, o que dificultava o encaminhamento para carreiras científicas ou políticas e o controle sobre o próprio corpo; contudo, existiram mulheres brasileiras que foram resistentes a essa sociedade patriarcal e lutaram pela igualdade de direitos. Dentre elas, merece destaque a escritora regionalista Rachel de Queiroz, que em 1977 foi a primeira mulher a entrar na Academia Brasileira de Letras.
Rachel nasceu em 1910 em Fortaleza, Ceará, foi professora, jornalista, romancista, tradutora, cronista e teatróloga. Escreveu diversas obras, sendo conhecida, principalmente, pelos romances “O Quinze” (1930), “As três Marias” (1939), “Dôra, Doralina (1975) e “Memorial de Maria Moura” (1992). Ganhou diversos prêmios pelas obras individuais e pelo conjunto da sua obra. A escritora era comunista, foi presa algumas vezes combatendo a ditadura, enfrentou a morte da filha e do segundo marido e frustrava-se com a situação política do Brasil. Faleceu no Rio de Janeiro em 2003.
O romance “Memorial de Maria Moura” se passa no sertão, no século XIX. Nele Rachel dá vida a uma personagem peculiar: Maria Moura, que ambiciosa e defensora dos seus interesses, veste-se com calça masculina, corta os cabelos e prospera como chefe de um bando de cangaceiros. Podemos supor que uma das inspirações de Rachel para a criação dessa personagem foi o seu contato com a anarquista Maria Lacerda de Moura, embora Rachel se identificasse mais com o comunismo. Outras inspirações possíveis foram a sua tataravó, Bárbara Pereira de Alencar, que foi uma das líderes da Revolta Republicana, que aconteceu no nordeste, e a rainha Elizabeth I. Ao longo da trama, os conhecimentos de Maria Moura sobre o uso de armas e a produção de pólvora, substância explosiva usada para realizar os disparos das armas, permitiram-lhe conquistar o respeito por meio da violência. Moura passou a ser temida, tomava a frente nas decisões, construiu para si e seu bando um misto de casa grande e fortaleza militar.
A pólvora é o produto de uma mistura complexa de três ingredientes fundamentais: o nitrato de potássio (salitre), o enxofre e o carvão. O salitre era o reagente mais difícil de se obter na época em que se passa o romance, pois é altamente solúvel em água. Solubilidade é a propriedade de uma substância em se dissolver em determinado volume de líquido. Portanto, se o salitre entrasse em contato com a umidade do ar, poderia facilmente ser contaminado. Na natureza era encontrado em depósitos naturais onde não havia muita chuva, principalmente no deserto do Atacama, e precisava ser transportado com cuidado. Com a tecnologia atual, esse sal pode ser sintetizado em laboratórios com maior rigor de pureza. Já o enxofre, substância de cor amarelada e insolúvel em água, era obtido em depósitos de origem vulcânica e em farmácias, utilizado como medicamento. Atualmente, ainda é encontrado em farmácias e também em refino de petróleo, sendo recuperado por meio do gás natural. Quanto ao último reagente, Moura utilizava o carvão vegetal, pois ele pode ser facilmente obtido por meio da queima de troncos de árvores.
Maria Moura, usando desses conhecimentos científicos e mantendo contatos estratégicos com fornecedores de salitre e enxofre, produziu pólvora para si e seus homens. Enquanto na época de Moura a violência era uma das poucas maneiras da mulher conquistar sua liderança na sociedade, hoje ela tem meios não agressivos para conseguir o mesmo resultado, como o uso de métodos contraceptivos e a inserção no mercado de trabalho.
Os movimentos feministas tiveram grande contribuição na conquista dos direitos da mulher ao longo do tempo. Apesar de atualmente existir uma banalização do tema, tem-se a impressão de que a luta se reduz à conquista de privilégios, mas na verdade, ainda existem desigualdades entre homens e mulheres, como salário inferior, pouca representatividade em cargos de liderança e a violência doméstica. Contudo, com muita resistência, a mulher conseguiu o direito à educação, ao ingresso no mercado de trabalho e também ao voto. Com a influência da ciência, a mulher conquistou o direito ao uso de anticoncepcionais, método contraceptivo, que lhe permitiu optar por ser genitora ou não. Desvinculando-se da figura materna e do lar, a mulher pôde finalmente ampliar os seus horizontes e conquistar os seus sonhos para além da rotina doméstica, mas muitas mulheres têm resistido a essa incoerência da divisão de papéis sociais.
A trajetória de vida de Rachel de Queiroz e sua personagem Maria Moura são uns dos inúmeros exemplos que podem servir de inspiração às mulheres brasileiras do século XXI. Quem disse que a mulher tem que se sujeitar ao homem? Quem disse que a mulher é inferior ao homem? Quem disse que ela tem que ficar presa em casa cozinhando e lavando? Por que a mulher precisa conquistar algo que já deveria ser seu por direito? O que muitos aprendem que é natural da sociedade, afinal, não é. É inadmissível continuarmos vivenciando atitudes machistas calados e caladas.
Fonte: texto produzido pelos alunos da Escola Estadual Jardim Buscardi sob orientação dos licenciandos da UNESP, Fernanda Aparecida Bernardo, Letícia Maria dos Santos e Carlos Sérgio Leonardo Júnior (professor de Química do Grupo Pró-Estudar), publicado na revista “Momentto” (edição de agosto de 2018) do Jornal do Comércio de Matão-SP.
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